Da literatura ao cinema, a relação do Nordeste com seus recursos ecoa numa grande construção simbólica

É forte a identificação do homem nordestino com o discurso religioso, marcado pela fé nos santos populares. No Ceará, a devoção a São José incorpora a figura do “pai providente” e ganha significação especial por seu dia, 19 de março, coincidir com o solstício – fenômeno que marca a início do inverno.

No imaginário do cearense, o pai adotivo de Jesus Cristo, segundo a Igreja Católica, é uma das divindades a interceder junto a Deus no sentido de mandar chuva. A aproximação com o sertanejo torna-se ainda mais estreita quando São José, considerado padroeiro dos cearenses, assume o papel de homem simples, carpinteiro e chefe de família exemplar, conforme representações do catolicismo.

É dessa maneira que o homem do sertão materializa o santo, no qual deposita a última esperança de um bom inverno. A confiança no apelo divino, simbolizada pelas orações, promessas e simpatias, faz com que o sertanejo desafie o discurso científico. Por isso, lança mão de experiências, baseadas na sabedoria popular, de observação da natureza.

É nela que se fundamentam, por exemplo, os prognósticos dos “profetas da chuva” – manifestação popular verificada no município de Quixadá, que serviu de tema para o documentário homônimo do cineasta cearense Marcus Moura. Nessa peleja, que se repete a cada ano, o sertanejo conta com a interseção de três santos: Santa Luzia, São Sebastião e São José.

Juntos, eles formam a trilogia sagrada para os sertanejos, ornamentando oratórios ou paredes, numa demonstração de proteção permanente e reverência. Como relatam os versos de “Triste partida”, do poeta Patativa do Assaré, depois que os meses de setembro, outubro e novembro passam, o homem do sertão começa a ficar aflito e sai em busca de sinais divinos.

“Ele se baseia na sensibilidade da natureza expressa em animais como formigas, abelhas e no João de Barro”, reforça o pesquisador e teatrólogo Oswald Barroso, completando que um bom profeta da chuva é capaz, sim, de decifrar com precisão esses sinais. “A percepção do homem e dos animais é muito rica. A gente não percebe só com instrumentos científicos”, argumenta.

Conexões

A relação com os santos populares é uma maneira de as pessoas buscarem novamente esse contato, observa o pesquisador, afirmando que no catolicismo popular há uma associação dos santos com os fenômenos naturais, citando São Pedro, protetor das águas, entre outros. Na trilogia dos santos que intercedem para garantir bom inverno, está também São Sebastião, encarregado de proteger as matas e garantir mesa farta, cuja festa acontece no dia 20 de janeiro.

Mas, caso até 19 de março não tenha caído nenhuma gota d’água para fazer renascer a caatinga, o cearense volta os olhos ao céu, num sinal de última esperança. “São José representa uma energia ligada ao clima”, observa Barroso, buscando explicação no catolicismo popular para referendar sua relação com a chuva.

A escolha para ser pai de Jesus foi devido ao seu cajado ter florescido, dentre os dos demais homens. Em algumas representações, São José aparece com um galho de lírio, que sai do seu cajado, significando floração – em outras palavras, fertilidade da terra. Daí uma das explicações para sua ligação com o inverno.

Em ano de boas chuvas, o momento é de agradecer. Também fazem parte da devoção dos sertanejos São Francisco, Santo Antônio, Padre Cícero, entre outros. “Várias entidades são incorporadas, formando uma confluência de energias”, destaca Barroso, lembrando que o saber antecede a ciência, que ganha força com o discurso da modernidade.

A crença em observar os sinais da natureza é vista, ainda, como herança indígena, sendo essa percepção popular observada em várias religiões.

Interferência do homem

Inseridos numa região marcada por longos períodos de escassez de chuva, desde o descobrimento do Brasil, o nordestino é a somatória entre o índio, o negro e o europeu pobre. A junção resultou numa cultura popular muito forte, observa Barroso, lamentando a pouca presença do negro na equação.

No arcabouço de um discurso forjado tendo como base um Nordeste do atraso e da seca, o sertanejo é considerado “um forte”, pela resistência diante das dificuldades. No entanto, o pesquisador se contrapõe a essa visão, chamando a atenção para a interferência do homem com práticas agrícolas inadequadas, contribuindo para o desequilíbrio do meio ambiente.

“Até 1.600 não havia registro de seca entre a população nordestina que sabia conviver com os tempos de estiagens”, observa. Nesse período, migrava-se para as regiões de baixios. A história da seca começa em 1.700.

A interferência do homem foi fundamental no agravamento do fenômeno, até então encarado como natural. Assim, passou-se a conviver com uma dicotomia tanto geográfica quanto sentimental. O sertão ora é lugar que fere como os espinhos da caatinga, ora é terra rica que dá desde o alimento à alegria das festas e das manifestações artísticas.

Tal dicotomia alimenta o imaginário de uma cultura que ganhou destaque na construção de um discurso reforçado pelas artes.

Romance de 30

A partir do século XVIII, as secas começaram a matar milhares, como aconteceu na de 1877, sendo aplicadas políticas emergenciais – oferta de passagens para o nordestino buscar a sorte em “Eldorados”, inicialmente a Amazônia, durante o ciclo da borracha.

Depois, torna-se boia fria nos estados do Sudeste, passando pelas frentes de serviços, buscando até hoje construir sua(s) identidade(s). “Houve um período em que a arte foi marcada por forte influência modernista e os fenômenos naturais, tratados como alienações”, explica Barroso, citando a visão de Euclides da Cunha – autor de “Os sertões” – sobre o nordestino, preconceituosa e até racista.

fonte:http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/agua-seca-e-cultura-1.1504545

Previous post Mais de 1 milhão deve gerar a própria energia
Next post Dia Internacional da Mulher

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *